quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Graciliano Ramos - Escreveu, Sofreu e Venceu

Um escritor que nunca fez questão em vir a sê-lo, vocês acreditam? Não? Pois no caso de Graciliano foi justamente isso que aconteceu. Ele era atípico no ofício de escrever, não se isolava do mundo real, ao contrário, queria e conseguiu retratá-lo tal qual ele era, obscuro e cruel.

Na sua loja de tecidos em Palmeira dos Índios (Alagoas), a figura de um homem cordial e amável sobressaía por detrás do balcão. Senhoras e moças da cidade, suas freguesas,assim como a minha mãe, iam até lá para escolherem seus crepes, sedas, linhos, chita ou algodão. Ele servia a todas com presteza, mas poucas palavras,acredito que, inconscientemente, as guardaria para suas obras-primas como Vidas Secas, São Bernardo e Memórias do Cárcere.
O que fervilhava na imaginação daquele homem tão sóbrio para que, na sua maturidade, próximo aos quarenta anos, se tornasse um dos mais importantes prosadores do Brasil ao lado de Machado de Assis e Guimarães Rosa? Nesse mistério, jamais penetraremos.
A situação toda parece ter acontecido meio por acidente do destino. Um tanto contrariado, mais para atender os apelos dos amigos e dos moradores da cidade, deixa-se lançar na política e não deu outra, ganhou a prefeitura.
Não só ganhou a prefeitura de Palmeira dos Índios como realizou a melhor administração de todos os tempos. Seus pareceres eram tidos como peças raras literárias e a notícia correu nordeste afora. Depois, foi chamado para ocupar dois cargos públicos em Maceió, diretor da Imprensa Oficial e também da Instrução Pública. A essa altura, Augusto Frederico Schmidt o estimulava a publicar seu primeiro livro, Caetés. Daí, não parou mais, virou celebridade, mas o homem tranquilo e consciente, nascido em Quebrangulo (lugarejo nos arredores de Palmeira dos Índios), não deixou a fama subir-lhe à cabeça.

Vidas Secas, seu livro mais conhecido, não tinha muitas páginas, era fino, de leitura rápida e direta, sem complicações léxicas, sem apelações para o sentimentalismo fácil. Graciliano não tolerava jogos de palavras e cada palavra que usava só lhe servia para deixar que a realidade se apresentasse tal e qual nasceu, nua e crua, das páginas de suas obras. A seca do nordeste era seca mesmo e o sofrimento atroz dos nordestinos era um sofrer real, sem maquiagens, sem palavrórios inúteis. Isso explica porque dispensava a poesia e nunca se ocupara em escrever uma sequer. Se, por acaso, surgir alguém que diga que achou um só poema de Graciliano, ou enganou-se ou age de má fé, pois ele declarava publicamente que não gostava de poesia. Fazer o que? Pelo menos, ele sempre foi firme e franco nos seus gostos e decisões.
Mudou-se para o Rio de Janeiro, bairro de Laranjeiras, onde exerceu o jornalismo e cercou-se ali, em reuniões no seu apartamento, das melhores cabeças da época, de Manuel Bandeira, José Lins do Rego a Carlos Drummond de Andrade. Que época de ouro, hein?
Mas o que era doce acabou-se com a ditadura de Getúlio Vargas e a tirania que nunca rimou com liberdade de pensamento o arrastou preso e humilhado em um navio infecto para a Ilha Grande, presídio sinistro, onde seria torturado e, pior que tudo, sem uma única acusação formal. Ele não era militante político de esquerda à época.

O seu defensor foi outro homem e jurista de enorme respeitabilidade, Sobral Pinto. Quero abrir um parênteses aqui para declarar que tive a honra de cumprimentá-lo quando fazia o meu curso de Direito. Ele estava já com cem anos, sua cabecinha parecia feita de flocos de algodão, mas palestrou com a lucidez de um bacharel de vinte anos. Ainda se fazem homens e profissonais assim? Talvez sim...talvez não.
Sabem qual a Lei que o mineiro ilustre da cidade de Barbacena - a cidade das rosas - aplicou para retirar Graciliano das garras da morte? A LEI DE DEFESA AOS ANIMAIS e o argumento foi claro, simples, mas incisivo:"- Se devemos, por Lei, proteger e respeitarmos os animais por que não o fazemos com os nossos semelhantes?" Assim, o nosso escritor ganhou a sua Liberdade. Saudade de ti, Sobral Pinto!
Memórias do Cárcere (virou filme com Carlos Vereza no papel principal) veio a público e Graciliano contou tudo, com aquele seu estilo exato, meio existencialista e psicológico, sem rodeios.

Contista de primeira, Graciliano nos impressiona com os seus relatos quase auto-biográficos, inclusive quando estava moribundo, no hospital, morrendo de câncer no pulmão de tanto fumar e, provavelmente, com sequelas sofridas na prisão. Em um desses contos ele fala das paredes brancas do quarto e da solidão de morrer só.
O cineasta Nélson Pereira dos Santos filmou com primor um dos dez melhores filmes do mundo, Vidas Secas, película que se insere ao lado de Cidadão Kane de Orson Welles.

E assim, vocês que chegaram até aqui comigo, podem já ter notado que, mais uma vez, o destino pregou-me uma grata surpresa: minha mãe recebeu seus vestidos das mãos de um dos maiores escritores do mundo e eu apertei a mão do melhor e mais generoso jurista de todos os tempos e um ciclo se fechou. Fui uma privilegiada e não sabia.
Graciliano Ramos, estóico e íntegro, gente de verdade, tu foste um ser iluminado e muito especial! Venceste!
Vamos falar um pouquinho do músico Hermeto Paschoal?
Multi-instrumentista, nascido em Arapiraca (alagoano também, esse danado), Hermeto retira sons até da natureza, desde canudos de mamona a uma poça d'água. Mestre em acordeon, flauta, piano, saxofone, trompete, bombardina, escaleta, violão e a lista não tem fim, minha gente.
Convidado a visitar os Estados Unidos, encontrou-se com Miles Davis e ambos trocaram experiências jazzísticas.
Apresentou-se com sucesso por quase toda a Europa, principalmente na Dinamarca, Alemanha e Suiça. É tido pelos especialistas musicais como "romanceador da música" e abriu as portas para a criação da Música Universal.
Ouviremos aqui a música"São Jorge" que nos apresenta o ritmo do galope de um cavalo chamado Faísca. Papa fina, gente! É mais que nordeste, mais que Brasil, Hermeto é um patrimônio vivo do nosso planeta.
Dá-lhe, Hermeto!
Volto ano que vem, se Deus quiser! Muita coisa pra fazer na vida real...
Boas Festas, amigos! Um glorioso 2011 a todos!
Obs: Retornarei a todos os comentários.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Ai, ai, que bom!

Quando li pela primeira vez Chuva de Caju de Joaquim Cardozo(1897/1978), fiquei tomada de muito prazer. Era aquilo mesmo que eu vira e sentira acontecer no nordeste brasileiro. A suavidade e a poesia telúrica estavam ali presentes nas imagens construídas por Joaquim que, apesar das dificuldades por que passam os sertanejos, ainda assim, ele trouxe-nos calores, sabores e aromas daquele chão crestado pelo sol. - Ei, dona Maria e dona Tereza, o que me trazem aí nesses cestos?
- É caju, meu fio, vai querê? Responderam ambas ao mesmo tempo.
Quem vê e vive cenas assim, jamais vai querer esquecê-las e, se possível, vai passá-las adiante.

Roçados de doces melancias, muricis com odor azedo e forte, umbus com gosto de mel e muitos cajueiros chovendo suas carnes suculentas a descer por nossas gargantas secas. Sucos e lambuzos de frutas e poesia que o Mestre pernambucano traduziu para nós. Até chinês ele lia no original, querem mais do que isso? Para mim é o suficiente se até no Português eu me engasgo.

Joaquim Cardozo não se contentou em ser Mestre na Poesia e sua estrada foi mais longa.
Ele tornou-se um dos maiores engenheiros calculistas do mundo e junto aos cérebros privilegiados de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa saiu construindo Brasília, Pampulha e muita arquitetura boa por esse Brasil afora.
Tímido ao extremo, manteve-se afastado das badalações literárias, mas suas Obras - no papel e no cimento - ultrapassaram fronteiras e se eternizaram feito as pirâmides do Egito.

Chuva de Caju

Como te chamas, pequena chuva inconstante e breve?
Como te chamas, dize, chuva simples e leve?
Tereza, Maria?
Entre, invade a casa, molha o chão,
Molha a mesa e os livros.
Sei de onde vens, sei por onde andaste.
Vens dos subúrbios distantes, dos sítios aromáticos
Onde as mangueiras florescem, onde há cajus e mangabas,
Onde os coqueiros se aprumam nos baldes dos viveiros.
E em noites de lua cheia passam rondando os maruins:
Lama viva, espírito do ar noturno do mangue.
Invade a casa, molha o chão,
Muito me agrada a tua companhia,
Porque eu te quero muito bem, doce chuva,
Quem te chamas, Tereza ou Maria?

Musicalmente, já que trouxe aqui o filho, Gonzaguinha, solicito agora, a gentileza ao pai, Gonzagão, para que se apresente e faça Elba Ramalho, essa menina arretada, cantar com voz de pastorinha a Estrada de Canindé. Venha, Elba, cante bonito pra gente!
Ouçam bem essa preciosidade que vai continuar na próxima postagem quando, se Deus quiser, pedirei a Graciliano Ramos que fale de Vidas Secas para quem quiser ouvi-lo. Mas me digam, meus compadres, quem aí sabe que o galo campina quando canta muda de cor? E essa gente andando a pé, vai oiando coisa a grané, coisas que pra mode vê, o cristão tem que andá a pé...