terça-feira, 26 de agosto de 2014

Heathcliff, a paixão que nunca morre

Heathcliff é mais um daqueles personagens que se evadiram das páginas de um livro e tomaram um rumo próprio. O livro, no caso, trata-se do Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë. 
Um menino cigano é adotado e amavelmente tratado por seu pai adotivo, mas após o falecimento do mesmo as coisas mudam para pior, aliás, para bem pior, sendo que Heathcliff torna-se um escravo do ciumento irmão, filho legítimo da família. Açoitado, espezinhado, desrespeitado brutalmente, ele só encontra apoio e carinho na companhia de Catherine, sua irmã adotiva.
Bem, mas aqui não se trata de mais uma resenha de um clássico da literatura mundial, a nossa abordagem pretende enveredar por outros escaninhos mais enigmáticos da alma humana.
Na verdade, Heathcliff e Cathy constroem para ambos seus próprios códigos e suas afinidades tornam-se mais estreitas, daí nascendo um relacionamento efetiva e afetivamante forte,
podendo-se dizer eterno, indestrutível.
A trama que se tece entre eles mostra-se intrincada de gestos sutis e, paradoxalmente, também revela uma paixão visceral diferente de tudo o que se possa imaginar.
O clima do romance é telúrico, feito de terra, lama, chuvas, ventos que uivam como lobos, e muitos animais e plantas silvestres. Resumindo, selvageria e pura ternura se confundem nessas almas apaixonadas. As feridas das chibatadas nas costas do amado são tratadas com a saliva da língua de Cathy.
Mas Cathy torna-se mulher e descobre a vaidade da vida confortável e burguesa, namora um rapaz de muitas posses e pouca personalidade. Heathcliff foge, desaparece do mapa. Heathcliff retorna como um homem muito rico, riqueza nebulosa, mas como dinheiro é dinheiro, ele é aceito por todos. Seu temperamento modificou-se drasticamente, está taciturno, senhor de si, vingativo e cruel.
Uma coisa, apenas uma, não vai mudar, a sua tórrida paixão por Catherine que adoece e morre por não poder romper com seu falso casamento de fachada.
E é nesse ponto que começamos a nos perguntar: Heathcliff enlouqueceu ou seu amor transcendeu à morte de sua Cathy? A razão, nessas circunstâncias, não nos serve mais de ferramenta para prosseguirmos numa análise certinha e pasteurizada. Pelo contrário, a razão de nada vale.
  Heathcliff, enlouquecido ou não, vai em busca de Cathy até em sua última morada e escava o túmulo com suas próprias mãos, só parando quando a "vê" passar por entre as urzes do campo, seguindo-a e perdendo-a de vista.
Só aí podemos verificar que "a paixão" desse homem agrega em si dois significados, o seu sofrimento interior intenso e a sua vontade férrea de se completar através do amor de sua amada que se foi e não voltará jamais. Duplo martírio esse dos que amam sem poderem encontrar a felicidade terrena.
Mas gostaria de  permitir que a própria e genial, Emily Brontë, fale da sua mais bem querida criatura:
"E o meu amor por Heathcliff é como as rochas eternas que ficam debaixo do chão; uma fonte de felicidade quase invisível, mas necessária."

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Estóicos e hedonistas uivam para a lua

Estamos em tempos de lua cheia, sombras e sussurros, há lobisomens a rondar. Os cães uivam, homens morrem de desastre na terra e no ar, viúvas enlutam-se de negro fechado.
Fechados em seus princípios herméticos, reais ou virtuais estão os hedonistas, cultivadores da flor iridescente do prazer a qualquer preço; alto preço a ser pago, rosa sanguinolenta, sangue jorrando da fonte do capitalismo desvairado, louco e por origem, indecente.
Já os estóicos, curvam-se aos duros açoites do destino, não choram nem riem, apenas se arrastam, caminham sem olhar o céu, sem perceberem se existe ao menos a mínima possibilidade de um amanhã.
O encontro já marcado estava em alguma curva dessa estrada. Eles, hedonistas irresponsáveis
 e mais os estóicos vergastados e de olhos esbugalhados pela dor se ajoelharão ao pé de uma cruz, todos uivarão tão alto, tão alto que a própria vida morrerá ensurdecida.
E a refulgente flor, banhada pelo sangue dos inocentes lançará suas aveludadas pétalas aos ventos que virão de um futuro qualquer...

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Mensagens dos meninos perdidos - última parte

A Rua do Corte, era nada mais, nada menos que um rasgão no barranco vermelho, conduzindo a uma mina abandonada. Lá era o lugar onde Paulinho Boiola, o afeminado, Beto Ferrugem, o ruivo sardento, Naldo Ricaço, de topete engomado, Filé Boa Vida e, lógico, Tonico Pretinho que acaba de apontar uma faca pra moça da mochila; viviam - se é que isso é viver - dos seus furtos e brincadeiras.Brincadeiras sim, e por que não? Eles são crianças, desprezadas, amaldiçoadas por todos nós, mas mesmo assim...crianças. A "boa sociedade" da qual fazemos parte,  os chamam de escória, lixo. Tá parecendo panfletário? Tudo bem, vou mudar o papo e voltar ao mundo da fantasia.
Ia me esquecendo do Mandrake, o cãozinho sujo e sarnento, um vira-latas originado de toda uma estirpe da pior espécie da raça "tomba", não conhecem essa raça? Pois é, trata-se de uma variante mais fedorenta e suja do que a dos vira-latas normais. Isso é que é pedigree!
- O que a madame quer por aqui? A faca tocando o estômago de Nieta.
- Bem, me mandaram trazer um negócio pra vocês, nada demais...(estranho, o medo de Nieta desapareceu, afinal, ela estava diante de um pobre garoto também assustado e acabou sentindo-se igual a ele).
- Olha, moça, vamos indo pra birosca do seu João porque é lá que meus amigos tão tomando uns trago.
- Falou! Vamos!
Sobem um viaduto de onde se avista uma linha de trem, camelôs com suas quinquilharias já estão armando seus produtos contrabandeados quando um deles avança sobre a mensageira Nieta e lhe aperta os seios com vontade. - Qualé, cumpadi! Tonico fica bravo e dá um solavanco no velho safado. - Tu num tá vendo que a muié tá comigo? Vaza daqui!
- Gente, essa dona aqui quer falar uns troços com a gente!Berra bem alto, o Pretinho.
Naldo, o engomadinho, se levanta do balcão e botando a mão no ombro de Nieta dá uma piscadela de olho. Toma a palavra e diz em tom de galhofa: - Veio salvar a gente? Hum, mas dessa vez mandaram uma salvadora boazuda. E ri, faltando alguns dentes na boca fina e anêmica.
Já na úmida caverna, em meio às cobertas velhas e rasgadas, todos sentados e já mais com os ânimos serenados, ouvem o que Nieta veio para lhes dizer.
- Eu sei que vocês têm todos os motivos para não confiarem em ninguém, mas acontece que outro dia eu recebi uns pacotes do estrangeiro...
- Ah, pacotes, né? Retruca com voz fina, o Boiola...
- Deixa a mulher continuar, caramba! Agora é Beto Ferrugem que bota um fim na bagunça.
Mas Nieta apenas abre a mochila e retira dela as cinco caixas de madeira e em seguida, sai entregando uma para cada um com as suas respectivas mensagens. Foi um momento de uma seriedade quase ritualística.
As caixas iam se abrindo e de dentro delas iam saltando os super-heróis preferidos de cada um dos meninos. Um ganhara o Hulk, do outro lado já estava o Homem Aranha, mais adiante, o Homem de Ferro, assim por diante. Mas todos eles com os nomes dos meninos e uma mensagem inscrita nas bases de apoio. Mas acontece que os meninos não sabiam ler.
Nieta, pacientemente, leu todas as mensagens. Os pequenos heróis foram parar num caixote de madeira que lhes servia de mesa. Todos os garotos ainda estavam meio zonzos e chapados da bebedeira, exaustos e moídos, dormiram de uma vez só.
A mensageira Antonieta saiu devagarzinho e ainda voltou a cabeça para olhar a última cena: fazia frio e os corpos abraçados formavam uma única massa de grandiosos sonhos, sonhos vãos e perdidos.
Eram apenas meninos e para sempre, infelizmente, irremediavelmente... perdidos. FIM
---------------------------------------------------------
Os nomes de Jonathan e Swiftilândia foram inventados por mim numa referência ao grande filósofo irlandês, Jonathan Swift que para criticar a sociedade inglesa da época, escreveu sobre uma cidade fictícia, Lilliput, onde homens pequenos travavam lutas inglórias contra os homens grandes.
Recentemente assisti o filme Os Incompreendidos do criador da Nouvelle Vague francesa, o sensível e grande cineasta, François Truffaut. Cabe aqui também revelar que tentei dar uns leves toques inspirada nos geniais Michelangelo Antonioni e Luiz Buñuel, críticos mordazes da burguesia em geral, quem os conhecer vai entender o que quero dizer.
Bem, agora já posso voltar aos meus  poemas de amor...[uma bela e irônica gargalhada insiste em sair da minha garganta]
Tchau, meus coleguinhas, espero que durmam bem nas suas almofadas de seda!